4 de Abril de 2002 a 4 de Abril de 2023, completados 21 anos que reflexões se impõem deste dia?
O 4 de Abril em Angola é uma data quase equivalente ao 11 de Novembro. Nós temos que entender que a 11 de Novembro celebramos a nossa independência do jugo colonial. Em 1974, houve o derrube do regime fascista em Portugal e as colónias tornaram-se independentes. Angola era uma delas. Mas a independência de Angola foi conseguida sob protestos da FNLA e da UNITA que proclamaram a independência do Bengo e do Huambo, na mesma altura em que o saudoso Presidente António Agostinho Neto celebrava a liberdade em Luanda. Depois da independência, nós angolanos das várias ideologias políticas continuamos a não nos entender, vindo a desencadear uma guerra civil que foi exacerbada pela intervenção da União Soviética e Cuba (a apoiar as FAPLA) e os Estados Unidos juntamente com a África do Sul (em apoio das FALA, pela UNITA).
E o período logo após a independência foi quase por completo marcado pela guerra que tivemos contra a África do Sul que só terminou em 1988 com a assinatura do acordo tripartido (Angola, Cuba e África do Sul) que permitiu a independência da Namíbia, por exemplo, e, de forma directa ou indirecta, permitiu a libertação de Nelson Mandela em 1994.
No entanto, chegamos ao período de paz entre 1991 e 1992, ainda com muita fragilidade. Era um momento de muita tensão quer em Luanda, quer cá no Bié, (no Andulo, por exemplo), que foi a retaguarda segura de Jonas Malheiro Savimbi (fundador do partido político UNITA, isto em 1966), nome que infelizmente, nós angolanos deixamos de incluir nos nossos discursos, algo que considero de grande importância referir e que continuemos a ser fiéis à história e a contá-la como ela foi. Notei a ausência de referência também à UNITA. Precisamos fazer referência a esses nomes para que haja uma perpetuação de estudos à volta desses movimentos políticos, das pessoas e a figura de Jonas Savimbi para que compreendamos o verdadeiro valor da paz. Senão teremos uma ideia distorcida da nossa história e outros virão ensinar-nos sobre a nossa história.
Devo realçar que antes de 4 de Abril de 2002, tivemos vários acordos (Alvor, Bicesse, Lusaka), mediados por outros países. O memorando de entendimento de Luena foi o que perdurou. Este acordo tem já 21 anos. Foi um acordo directo entre angolanos outrora desavindos.
Qual é a significância da paz para si e como enquadra ela no contexto Angolano?
O valor da paz vem do entendimento da ausência da mesma. Em 1992 tivemos as nossas eleições em condições extremamente difíceis. Tivemos pouco apoio das Nações Unidas na ocasião. O número de efectivos enviados pela ONU para a manutenção da paz no nosso país foi inferior em relação a Namíbia, por exemplo. Tínhamos dificuldades com o armazenamento de armas e o aquartelamento de soldados quer de uma parte (FAPLA), quer da outra (FALA). Estes pressupostos não foram concluídos até Outubro de 1992, o que resultou na guerra civil, que só terminou em 2002, com a assinatura do Memorando de Entendimento de Luena em Moxico, com o momento ímpar em Luanda da nossa história em que o antigo Presidente José Eduardo dos Santos abraçou o General Kamorteiro das FALA, antigo exército da UNITA. A guerra civil que perdurou por 55 dias no Huambo e nove meses aqui no Bié, sem a população ter acesso a água potável e alimentação, dizimou muitos compatriotas nossos. Foi um contexto atroz que nenhum povo quererá voltar a viver.
No entanto, existe uma franja da população, maioritariamente jovem, que não entende a preciosidade do momento actual de paz. O barulho das armas, a dor da perda de um ente querido e ter que o enterrar no próprio jardim, essa história tem de permanentemente ser contada para que as pessoas sintam e apreciem o valor da paz, da ausência desse barulho, dessa dor e dessa desumanização.
É inconcebível ver gente que, quer em vésperas de eleições ou de qualquer uma outra ocasião, esteja preparada para voltar à guerra. Só quem não viveu a guerra é que tem essa predisposição. Logo, um aspecto muito importante: que Angola continue a assegurar a paz, contando a história da guerra, e que esta paz se solidifique porque é um processo árduo.
Temos estado a dizer que é uma paz que vai perdurar eternamente. Que assim seja! Mas estou em crer que exista uma certa fragilidade naquilo que é o entendimento da paz, neste pais. Muitos ainda não a apreciam como o devem, lamentavelmente.
Essa é a paz militar, é a paz que nos permite ter a unidade nacional. Mas existem outras dimensões do conceito de paz: a paz significa concórdia, ausência de conflitos e estes, continuam a acontecer entre irmãos. Por essa razão, a paz, nessa dimensão social, ainda não é visível, porquanto existe muita violência (doméstica e não só), muito crime nos nossos bairros. Estes constituem um grande mal à nossa sociedade. Calaram-se as armas dos exércitos, sim, mas continuam os conflitos sociais e familiares, a falta de entendimento entre irmãos da mesma família. Portanto, nós temos que encontrar a nossa angolanidade, nos unir à volta da nossa angolanidade e definir, enquanto nação, aquilo que pretendemos fazer com o nosso país. Que tipo de sociedade pretendemos ser? Que legado, em termos de valores, gostaríamos de deixar para os nossos filhos? Que consciência nacionalista queremos ter? Sabe, quando falamos de nacionalistas, temos sempre a tendência de falar de uma geração do passado, muitos dos quais já não estão entre nós. Os que ainda existem não são ouvidos nas narrativas sobre a nossa história. Devemos ser todos nacionalistas, adaptados aos novos desafios de perda de valores nacionalistas e a necessidade de resgatar tais valores.
A Universidade Internacional do Cuanza apresenta-se com um centro de excelência de investigação científica que está comprometida com o desenvolvimento comunitário, bem como com a promoção da equidade e da paz social. Enquanto reitor desta Universidade, que contributo a UNIC tem dado para a promoção da paz, sua manutenção e como tem sido a consciencialização da comunidade académica em relação ao valor da paz para os Angolanos?
Nós, Universidade Internacional do Cuanza, temos como parte dos nossos valores, a solidariedade. Queremos incutir nos nossos discentes a prática da solidariedade. Queremos incutir neles esse conceito para que ao serem solidários com o próximo saibam que estarão a promover a concórdia, a harmonia e, assim estarão a criar ambientes propícios para que as pessoas desfrutem da liberdade e da paz que têm. De igual modo, nós temos estado a criar mecanismos de resolução de problemas. Temos o nosso regulamento académico geral que faz previsões a volta de resolução de conflitos. Brevemente teremos a nossa associação de estudantes criada que também será um fórum de resolução de problemas.
Mas é necessário que se perceba que uma sociedade sem problemas é quase impossível de se ter. Contudo, não é a existência de problemas que define a sociedade. Queremos que os nossos estudantes ao terminarem os seus ciclos formativos, tenham a consciência de que não é um bicho de sete cabeças ter problemas, mas o que é importante mesmo é a maneira como nós os resolvemos.
Estamos em crer que quando finalizado o ciclo de formação, cada estudante terá um leque de valores, entre os quais a solidariedade, mas também a competência de resolução de conflitos, a competência de ser resiliente, de ser capaz de vencer os desafios, como por exemplo, resistir à tentação de inclinar-se para a violência. Sabe-se que nós pretendemos ter aqui na UNIC uma formação integral, uma formação do homem e não do técnico somente. Queremos que saiam daqui pessoas com uma integridade intelectual muito forte e bem constituída, e que sejam pessoas equilibradas que vão contribuir para o desenvolvimento da sociedade.
No que acabou de auferir, faz por seu turno reflectir sobre o seguinte: passados os 20 anos nota-se ainda a predominância de um desenvolvimento assimétrico da capital Luanda. No seu ponto de vista não acha que como Nação, é tempo de se pensar Angola e agir Angola como um todo, como 18 províncias, quais são os pontos prioritários que devem ser atacados, o que deve ser feito para desenvolver Angola como um todo e descentralizar a capital Luanda?
Luanda é uma cidade que oferece muita segurança. É das cidades mais estáveis do nosso país. É uma cidade que também oferece os condicionalismos próprios para investimentos: água corrente, electricidade ininterrupta, mobilidade, proximidade ao mar (porto), existência de uma banca forte, experiência profissional (mão de obra especializada), classe média constituída, algumas infraestruturas hoteleiras, clínicas, etc., apesar de ser a mais pequena província de Angola com uma superfície de 113 quilômetros quadrados, ou seja, Luanda cabe 633 vezes dentro do Bié. As empresas do sector privado, olhando para as zonas de Luanda como por exemplo o Talatona, Nova Vida e alguns outros bairros que estão a surgir, sentem-se seguras em investir por entender que há o acesso ao crédito, as condições de edificação existem e o mercado tem o poder de compra.
Isto é possível porque o sector privado junto da banca teve a confiança no mercado e investiu de 2002 a 2020, altura da pandemia da Covid-19. Esses pressupostos (confiança no mercado, a existência da banca nesses mercados, a segurança social, poder de compra, etc.) são muito importantes para o investimento.
O que as outras províncias devem fazer é oferecer esses condicionalismos porque têm muito mais terreno que oferecer do que Luanda. O fomento ao surgimento de uma classe média nas províncias deve ser uma tarefa permanente. A viabilização do comércio dos terrenos por parte de jovens locais que se associam a grandes fazendeiros deve ser uma prioridade. O acesso ao crédito em condições favoráveis aos investidores deve permanecer com um objectivo do governo.
É aqui, fora de Luanda, que se percebe que há muito a ser feito para que o Cuito tenha um volume de infraestruturas e uma variedade de serviços equiparáveis a Luanda. Sendo esta uma cidade sem litoral, a prioridade deve ser em ligá-la ao mar. A criação de autoestradas para o Lobito, por exemplo, deve ser uma prioridade. A atracção para o Cuito de grandes supermercados como o Kero, AngoMart, etc. deve ser uma preocupação constante. Por outro lado, com mais do que 70 mil quilômetros quadrados, o Bié só cultiva em 7,6 mil quilômetros quadrados, apesar de ter chuvas durante 8 meses do ano. Um outro dado, por exemplo, o Bié tem uma densidade populacional de 25 habitantes por quilometro quadrado; Luanda tem 377.
É preciso parar, pensar e reflectir sobre o que exactamente queremos. Existe uma estratégia que nós vemos constantemente de se anunciar este ou aquele feito; inaugurar esta ou aquela infraestrutura. No entanto, não se tem noção da dimensão da necessidade que se está a colmatar. Por exemplo, uma escola com 7 salas pode albergar cerca de 420 estudantes em dois turnos. Não creio que muitas vilas têm aulas a noite. Por isso direi dois turnos. Este número deve ser contextualizado. Se a população nessa vila tiver mil crianças em idade escolar, com 420 vagas, está-se a colmatar 42 por cento da necessidade local. Esta figura é extremamente importante porque indica o que ainda deve ser feito.
Uma outra reflexão recai sobre a agricultura. Há 47 anos que estamos a falar na agricultura como a base para o desenvolvimento e devemos apostar nela porque vai permitir a diversificação da economia. Admitamos que tenha havido algum investimento na agricultura, principalmente nos últimos anos. Não vamos descurar isso, mas não é o investimento que se deseja para alargar a produtividade e sermos capazes de alimentar a África Austral, por exemplo ou a metade do continente. Esses devem ser os nossos objectivos. Devemos ser capazes de produzir entre 10 a 20 milhões de toneladas de milho, feijão, arroz, etc. Temos de ter a capacidade de especializar essa produção por intermédio de grandes fazendeiros.
O Brasil, por exemplo, tem os maiores fazendeiros do mundo. É o quarto país com a maior produção do gado suíno. A suinocultura é muito avançada naquele país, mas não temos Brasileiros a operar aqui na suinocultura. Não faz sentido, nós temos que aproveitar isso.
Devo frisar que o Presidente da República, o senhor João Manuel Gonçalves Lourenço está apostado no desenvolvimento do país, não restam dúvidas. É uma pessoa séria, comprometida com o desenvolvimento socioenconómico do país, mas ele precisa de muita energia à volta dele. Ele precisa de ser auxiliado com grandes ideias. Devemos manter a ideia de termos partes de Angola como os Estados Unidos.
Temos que reflectir, e à medida que vamos ganhando anos de paz torna-se imperioso que essa reflexão seja mais profunda para que tenhamos instituições que sejam respeitadas no mundo. Por exemplo, o sector privado existe no país em várias dimensões. Este só não é mais activo porque não tem uma banca que o assiste. Nós precisamos de fazer um estudo e ver quais são os condicionalismos impostos ao empréstimo industrial por exemplo, e de que modo criam constrangimentos para o acesso ao crédito. Note-se que há muita burocracia, muitas dificuldades que desencorajam o acesso ao crédito. Queremos continuar assim? Temos que pensar. Temos a nossa juventude a clamar por casas. Neste caso, devemos ver quais são os condicionalismos que impedem o sector privado de entrar nessa área, na área de construção de habitações como condomínios aqui no Bié. Por que não temos mais casas a serem construídas para o acesso à juventude pelo sector privado? Por que só existem centralidades construídas com fundos públicos fora de Luanda? Temos que olhar para os processos. Quais são os incentivos para o sector privado, em construir, por exemplo, casas para o acesso social? Não existem incentivos. Estes podem advir do apoio ao acesso ao crédito (condições favoráveis), alívio aduaneiro (transporte de material), alívio fiscal (isenção de pagamento de certos impostos), etc. Podemos ter incentivos fiscais sim, para que o sector privado garanta que os jovens que tenham acesso a um emprego tenham também as suas casas, porque eles querem constituir famílias e para o fazer precisam de ter uma casa. Devemos ter como prioridade arranjar mecanismos para a descentralização administrativa e, onde haja diamante, ouro, cobre, e outros recursos minerais se transforme essas áreas em cidades mineiras. Porquanto é fundamental que a população dessas zonas se beneficie, que todos tenham emprego.
No princípio da sua abordagem destacou que a paz é um bem precioso. Que mensagem tem a deixar para os angolanos em maneira geral neste dia?
Eu devo saudar antes de mais o senhor Presidente da República, em distinguir mais de 400 entidades entre as quais, notei que Isaías Samakuva e outros dirigentes da UNITA. É essa atitude de inclusão que precisamos para um futuro melhor. É preciso que sejam observados os aspectos da paz que ainda estão por ser conquistados. Na minha opinião pessoal, nós temos que olhar para todos Angolanos como Angolanos somente, independemente da sua cor partidária ou crença religiosa, são todos filhos da mesma pátria. Podemos ter ideologias e opiniões diferentes, mas somos todos Angolanos. Sejamos o mais inclusivo possível, baseando as nossas decisões no mérito e na contribuição que cada um pode dar para o engrandecimento deste país e o fortalecimento da paz.